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Mostrando postagens de dezembro, 2020

Estranho oráculo

Janelas abertas para um céu aos pedaços, gavetas fechadas que parecem abertas, cortinados indecisos que cobrem e descobrem. Coisas que, estou certa, já habitavam esses papéis que, para mim, jamais estão em branco. Minha sina é essa impositiva tarefa de revelar coisas que estavam todas escondidas no nada. Meio culposamente, sempre apressada, em luta com a negligência do desenho, com a imperícia  dos traçados a pincel, com a imprudência de trazer à tona segredos talvez. Obsessiva ocupação que me toma as mãos e a mente. Depois me pergunto se não faço do papel um estranho oráculo, ao qual consulto para saber de ti, habitando agora o infinito nada. Obsessiva ocupação para reinventar, todos os dias, a tua morte. Porque dela é a culpa de todas as coisas restarem assim tão confusas e inexplicadas. Mistério. 

Humanidades à parte

 Quando tudo acontece furiosamente, o que está na frente é ultrapassado pelo que está atrás. Como na vida, quando o passado atropela o futuro. Nossa existência é pensada no tempo e no espaço. Tributários dessa prisão dimensional, nosso horizonte é o de uma consciência de si, que a memória ora atormenta, ora ameniza, e que a morte ora consola, ora aterroriza. Humanidades à parte, não admira termos criado tantos deuses e tantos heróis. 

A dois

 Porque pode ser bom não estar só.

Nem que seja

 Para que saibas que, por mais tristes que sejam as flores e por mais cinzas que haja no fundo, é possível que haja laços infinitos.  Nem que seja apenas no domínio da arte.  Nem que seja só na minha imaginação.

São azuis

 Impulso noturno. A tal vontade de pintar. Me entrego aos pinceis e às águas. É o meu jardim de flores inventadas no qual descubro que troncos secos também florescem, mesmo sob céus febris.

Pobre imitação

 Cores. Gloriosas cores que as tintas só podem pobremente imitar.

Existencialmente só

Indefinível sensação que se exprime apenas nas cores e nas formas. É puro receio de que as palavras possam me atirar nos lugares comuns. Minha saudade é só minha, tão minha, que tem um desenho feito agora mesmo especialmente para ela, nesta véspera de Natal, que poderia ser Páscoa ou qualquer outra data tão profana quanto. Um desenho para te dizer que o mundo permanece igual ou pior ao que deixaste, e que eu permaneço nele, por ora, vivenciando o que esse hibisco experimenta: estar solta em meio a um vazio imenso, sem suporte algum além da própria cor e da própria fragilidade. Existencialmente só. 

Muito embora

Comecei a desenhar com certo cuidado até, na expectativa de descobrir que flores viriam. Nenhuma saiu da pontas do lápis. E depois, nenhuma tampouco saiu da ponta do pincel. Mexi com as cores, fui e voltei pelas folhas e pelas hastes. Iluminei e escureci o fundo. Nenhuma flor. Tenho para mim que, desta vez, não houve flores, muito embora o viço das folhas. Muito embora esperasse por elas. Muito embora já seja noite, e muito embora eu saiba que, mesmo que houvesse flores, tu não estás mais aqui para recebê-las de mim.

Marca Registrada

 Sei que existem muitas flores no mundo. Mas as que procuro não existem e, portanto, preciso inventá-las. Saem assim: tortas, desencontradas, estupidas no colorido e na forma. Nascem de gestos brutos, do excesso de tintas, da pressa, da imperfeição que é, enfim, a marca registrada de tudo que é provisório e improvisado.

Nem sempre

 Faz parte do enredo. Uvas nem sempre doces, panos de fundo nem sempre limpos e amparo em galhos nem sempre livres de espinhos. Ao final, tudo se confunde. Não se salva sequer a integridade de um céu nem sempre livre dos borrões das tintas que a água tornou indecisas. 

Curiosa

 Porque sempre existe alguém que não resiste e espia o tempo todo

Quem sabe?

 Para que a segunda-feira não passe em branco, trouxe o vermelho. São as tintas. As cores que queria tanto te entregar. As flores, os detalhes de fundo. Nada escapava ao teu olhar. Então, quem sabe?

Vaidosas

Porque há flores que demoram mais para se arrumar.

Não assim

Arranquei as flores e joguei no cesto sem limpar a terra que havia no fundo. Porque não daria tempo, não daria mais tempo. Não agora. Não hoje. Não assim.  

Simples exclusão

 Pensei que era tarde, que eu estava tão cansada, sem inspiração e sentindo calor. Mas olhei a folha de papel, alisei-a para sentir a leve aspereza que a torna tão absorvente, toquei-a depois mais forte, esperando para descobrir o invisível que já estava desenhado ali. Olhei os lápis coloridos e me deu vontade. É assim que acontece. O cansaço vai embora, começo a riscar e a colorir o que não vejo, não sei, não imagino. Expectadora do que virá, que me esforço por desconhecer. Estranho processo. Lembrei então de que era assim com a gente. Bastava o menor olhar, um toque, um som, e nos entendíamos. Não como eu e tu, mas como um produto dessa dualidade que se desintegrou com a tua deserção. Melhor quando silenciosamente. Do mesmo jeito que me entendo agora com as cores, com o papel e com as letras das palavras. Por uma dessas perversões do espírito, é pelas cores, riscos e palavras que te reconstruo como ausência.  Que faço então? Invento flores amarelas que não são flores, mas si...

Questões de gênero

Dificilmente resisto às cores frias. Gosto muito de azuis. Sinalizam que está tudo bem. Um pouquinho de azul que seja, uma pincelada, mesmo escondida, um canto de céu, uma janela aberta, a fresta de uma porta. Os azuis garantem a discrição, o contexto, o sentido: respeitosamente. Mas desta vez só vi vermelhos: escandalosos, alaranjados, indiscretos, promiscuamente mesclados a amarelos. Flores descabeladas, indecorosas e com espinhos. Enfim, flores mulheres, tais e quais elas ficam quando não se coloca ao menos um pouco de azul no fundo, outro tanto nas pétalas, toques discretos ao longo dos caules, tudo como garantia de sua elegância e, é claro, de sua respeitabilidade.

Que flores são essas?

São as que saíram da ponta do meu pincel. 

Quem sabe

Gavetas transformam banalidades em grandes segredos. Pairam mistérios sobre tudo o que elas escondem.  Por isso amo tanto gavetas. Nelas podemos guardar nossos nadas e nossos espaços vazios: imensos, escuros, onde não chega nem o azul da janela nem a alegria das flores. Pura saudade. Mas as flores estão ali. O cortinado, aberto. A janela também. Porque,  —  quem sabe  — , por ali, junto com o azul, pode entrar o teu olhar. 

Se

 Se a gente pudesse mandar embora tantas coisas feias que infestam o cotidiano.