Pensei que era tarde, que eu estava tão cansada, sem inspiração e sentindo calor. Mas olhei a folha de papel, alisei-a para sentir a leve aspereza que a torna tão absorvente, toquei-a depois mais forte, esperando para descobrir o invisível que já estava desenhado ali. Olhei os lápis coloridos e me deu vontade. É assim que acontece. O cansaço vai embora, começo a riscar e a colorir o que não vejo, não sei, não imagino. Expectadora do que virá, que me esforço por desconhecer. Estranho processo.
Lembrei então de que era assim com a gente. Bastava o menor olhar, um toque, um som, e nos entendíamos. Não como eu e tu, mas como um produto dessa dualidade que se desintegrou com a tua deserção. Melhor quando silenciosamente. Do mesmo jeito que me entendo agora com as cores, com o papel e com as letras das palavras. Por uma dessas perversões do espírito, é pelas cores, riscos e palavras que te reconstruo como ausência.
Que faço então? Invento flores amarelas que não são flores, mas sinos que tocam sem parar, loucamente, em todas as direções. Quem sabe poderás ouvi-los, ainda que não possas vê-los? Imagino que tocam com som de taças de cristal, delicadas taças que só servem para um único brinde e depois se partem, inúteis.
Sei que não existes mais. E sei que isso é estúpido, é gratuito e é absoluto. Tenho ciência e consciência da tua morte, mas não quero que seja assim. Porque eu posso confrontar o absurdo. E porque éramos e sempre fomos absurdos os dois.
Sei que a pacata conformidade existe. Também sei de cor todos os lugares comuns dos que se conformam. Conheço as frases feitas. Mas simplesmente não quero me acostumar à tua partida. Poderia, se quisesse. Mas não quero. Prefiro me habituar à dor e à saudade do que conviver com a conformidade, com o deus que quis assim, com o era previsto, com o tudo tem fim. A questão não é esta, a dita verdade dos fatos, a realidade da tua morte, etc. Isso é apenas o que é dado a todos, a todos que são não eu: simples exclusão.

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